segunda-feira, 12 de julho de 2021

Preito de Gratidão

Ela chegou de mansinho e, inicialmente, tinha tudo para não atender as exigências e o regime doméstico da casa. Chegou sem referências expressas. “Analfabeta, Sonia? Você acha que vai dar certo?” Alertei. Fiquei mais preocupado ao descobrir que portava uma prótese ocular no lado esquerdo. “Meu Deus, será que ela consegue?” Contudo, nossas necessidades daquele momento precipitou a contratação dos serviços domésticos daquela criatura, carente de emprego, que se ofereceu na portaria do nosso prédio. A Patroa resolveu fazer uma experiência. Uma das exigências era de dormir no emprego com óbvio direito a uma folga semanal. Acertos das duas partes e passamos a contar com uma nova secretária doméstica. Decorria o mês de novembro do ano de 1998. Depois da primeira folga semanal volta ela afirmando “acontece que sou amigada e meu homem exige que eu durma em casa toda noite”. “Ah, então a Senhora é casada?” Perguntei. “Não Senhor! Quem casa é canário. A gente pobre se amiga. Casamento é coisa de gente rica.” Percebi nessa hora, que a disposta Iracema (47 anos de idade) deu o recado direto de como era sua personalidade, sua vida e como resolvia suas questões pessoais. Sem outra razão que fosse, decidimos seguir e contratá-la. Carteira assinada, INSS em dia, além de passagens diárias de transportes. Com pouco tempo mostrou-se disposta e capaz de dar conta do recado, não obstante ser caolha e analfabeta. Ganhou a confiança da casa e se tornou figura fundamental na vida de uma família cujos membros trabalhavam e estudavam. Sentiu-se, com alguma rapidez, a Senhora do pedaço. Todos saiam logo cedo e ela se sentia dona da casa. Tinha uma coisa crucial: atendia os telefonemas e por ser analfabeta não anotava recados. “Ligou uma mulé que quer falar com o Senhor!” Perguntei, “e o nome dela?” “Ela disse mas, esqueci”. Era uma graça. Nessa pisada, terminou ficando 23 anos às nossas ordens. Hoje lamentamos porque ela foi derrotada pela Covid-19, em abril passado. Fará muita falta. Dificilmente encontraremos uma figura leal, disposta e amiga como ela foi. Faço, portanto, um preito de gratidão a uma figura que viu nossos filhos se tornarem adultos e ganharem o mundo. Viajamos ao redor do planeta e ela dava conta do serviço. Com tempo contado, aposentou-se oficialmente, mas, continuou no batente. Vivia relativamente bem. Tinha sua rendinha mensal, equipava aos poucos a casinha que ganhou e ajudava aos filhos, filhas netos e bisnetos. No fim da vida estava retirada em casa por conta da pandemia. Seguramente, por sua audácia natural, num vacilo foi colhida fatalmente pelo vírus maligno, quando ainda nutria muitos projetos de vida.Foto a seguir junto com o filho Wellingto, na comemoração do aniversario em 2018.
Naturalmente que nossa convivência nem sempre era um mar de rosas. Relacionamento humano não é fácil. Principalmente nas condições dela. “Patrão sempre quer ter razão!” Dizia por qualquer motivo. Sem dúvidas era voluntariosa, birrenta, malcriada e cheia de vontades. Mas, tinha duas qualidades que superavam quaisquer desses defeitos: generosidade e solidariedade que se manifestavam, sempre que oportuno, de modo formidável. Ao longo dos anos, tornou-se meu elo de conhecimentos sociológicos entre a vida dos privilegiados, na qual vivo, e a sociedade periférica que habita às franjas da metrópole. Ela vivia, inicialmente, numa habitação subnormal numa comunidade de invasores, à beira do Canal do Arruda (Recife) e, nos últimos tempos, conseguiu um popular apartamento próprio doado pela Prefeitura do Recife como recompensa pela desapropriação do casebre que construiu e retirado do caminho para dar passagem a uma nova avenida. Foram momentos inesquecíveis de convivência com essa figura que se tornou quase parte da família. Na sua simplicidade e certa inocência, ignorância para alguns, saia-se com tiradas hilárias e que não posso esquecer. Jamais me esquecerei de um certo 28 de fevereiro, quando fui pagar seu salario e ela muito espantada me disse: “Ôxe, tá me adiantando-me este mês? Hoje inda é dia 28?” Lembrando-a que era fevereiro, escutei a mais incrível resposta: “Eita, diminuíram o mês agora, foi?” Garantiu-me que nunca avisaram pra ela que fevereiro só tinha 28 dias. Pasmo com aquele nível de conhecimento, fiquei imaginando que muitos outros passam pela mesma situação. Outra vez, chegou mais tarde para o trabalho por conta da passagem de um lobisomem durante a noite anterior, uma sexta-feira, pela região onde ela morava. Ficou de vigia para o bicho não entrar na casa dela e agarrar as duas netas que estavam com ela. Foi tema de um post aqui no Blog. Teve que levar as netas para um lugar seguro ao amanhecer. Noutra ocasião, aprontou-me uma boa (virou piada!) quando jogou fora metade dos queijos que preparei para uma noite de queijos e vinhos. “Mas, o Sinhô nem reparou que comprou metade dos queijos estragados. Tavam podre!”. Como explicar que o queijo gorgonzola era algo fino, caro e saboroso para aquela criatura cuidadosa na limpeza da geladeira? Tomei o prejuízo e a decepção na hora da degustação com os convidados. Pior, porém, foi no dia que chegou se lamentando de severa dor de cabeça, embora houvesse tomado “dois cachetes de navagina”. Fez-me dar boas risadas. Ficava impressionada como eu conseguia assistir ao noticiário da CNN Internacional com aqueles locutores falando “ingrês”. Adorava assistir ao programa de Jô Soares que ela chamava de João Soares. Fã também de Tony Ramos que ela chamava de Antônio Ramos. Ah! Foram muitas passagens engraçadas. E pensar que a Covid me pregou essa peça sem nenhuma graça. Vai com Deus Dona Iracema. Terei muitas saudades.

32 comentários:

Cláudio Targino disse...

Dona Iracema Tivemos também outras dona Iracema, em nossa casa.
De vez em quando relembramos suas passagens.

Vanja Nunes disse...

Que pena, Dona Iracema partiu e deixou saudades, era tão bom escutar as estórias dela contadas nas nossas aulas.
Mas descanse em paz.
E meu amigo vai ser quase impossível substituir dona Iracema

Cristina Carvalho disse...

O nome é mesmo -Gratidão -Quanta sensibilidade amigo!

Luciana Brasileiro disse...

Tio, Dona Iracema faleceu? Que tristeza.

Cristina Goes de Vitor disse...

Meus sentimentos pela perda de tão
Significativa pessoa.É lastimável ver uma
Figura tão preciosa partir por esse vírus tão maligno.
Externo aqui meus pêsames .É uma dor grande pra o casal.Abraço vcs.

Jose de Moraes Falcão disse...

Essa sua mensagem mostra o Girley por dentro. O grande amigo das pessoas simples. Esse ponto é relevante pois explicita o verso e o anverso desse grande homem que você é.

Jose Paulo Cavalcanti disse...

Que belo texto, amigo. Pungente. Bem pensado. E sobretudo bem escrito. Parabéns, amigo. Abraços.

Antonio Carlos Neves disse...

Lamentável recebam nossos sentimentos

Moisés Wolfenson disse...

Caro amigo, você perdeu uma joia de pessoa; Dona Iracema fazia parte de um segmento em extinção -Doméstica que trabalha feliz e faz parte da “família “ do patrão ! Já tive várias Iracemas( com 10, 15 e até 20 anos ininterruptos ,conosco). Hoje “aguentamos “diaristas ! Chega tarde e sai cedo e com pacotes ; muitas vezes levando nossas roupas , comidas,etc. Como acho constrangedor fazer averiguações , deixo passar como um salário indireto !!!

Rodrigo Leal Cantarelli disse...

Que pena, Girley. Não sabia do falecimento de Iracema.

Ina Melo disse...

Ah meu amigo que pena! Até quando iremos suportar viver com essa situação! Meus sentimentos. Eu costumo chamar de anjos do lar, essas pessoas que cuidam da gente com amor! Boa noite

Itamar Ferreira. disse...

Que Deus, a coloque em um bom lugar.

Grayny Brasileiro. disse...

Primo e muito triste meus pesames.

Anita Rozemblit disse...

Sinto muito.

Rinalva Silveira disse...

Interessante a história de D Iracema. Meus sentimentos aos familiares e a vcs
Uma grande perda, sem dúvida.

Ana Maria Miranda disse...

Girley ,estou muito comovida com as perdas irreparáveis que vocês sofreram : A nossa querida e insubstituível Leninha e agora soube que em abril a Covid levou Iracema esse ano tem sido realmente difícil cunhado , aceite meus sentimentos mais uma vez , que Deus a tenha , console todos vocês e a família dela.

Ana Inês Pina. disse...

Q D. Iracema esteja na paz do Senhor. Figura presente nas longas tardes de espera no simmepe.

Girley Brazileiro disse...

Verdade Ana Inês! Bem lembrado. Eu me divertia muito contando as presepadas dela aqui em casa. Foram sempre hilárias. Que Deus a tenha.

Luiz Henrique Leite disse...

👆 homenagem Maravilhosa reportagem do nossoGrandioso amigo GirleyBrasileiro. Fico gratificado com êsse momento de gratiďão a d. Iracema, pessoa encantadora, honesta, alegre, simples e amorisa no seu jeito de ser. Mande um abraço Grande pra êle. Diga a êle que foi uma magnífica homenagem a uma grande pessoa humana. Abraço.

Girley Brazileiro disse...

A mensagem de Luiz henrique Leite veio através de Pedro Correia

Margarida Lima disse...

Meus sentimentos.
As pessoas que marcam positivamente as nossas vidas nunca são esquecidas, ficam os sentimentos de gratidão e saudades.

Susana González disse...

Me uno a su pesar!

Cleide Farias. disse...

sentiremos saudades de Iracema!!!

Jocildo Bezerra disse...

Bela homenagem, amigo. As pessoas passam e deixam um pouco de si na gente. Quem sabe, levam um pouco da gente consigo!

Antonia Corinta Lucena Ribeiro disse...

Parabenizo você, Girley e Sonia, pela linda homenagem prestada a Iracema. Assim deviam todos proceder. As pessoas para mim valem pelas suas atitudes, pelo que sente, vocês sempre dedicaram muito carinho a esse ser humano. Meus respeitos ao casal.

Cleire Belfort disse...

Mis condolencias.

Naide Lúcia disse...

Infelizmente já não existem mais tantas Iracema por aí.

Andrerson Porto disse...

Bela homenagem amigo Girley, nos faz lembrar das muitas Iracemas q já passaram em nossas vidas.
Que Deus a acolha em um bom lugar!

Manuela Allain Davidson disse...

Iracema era uma mulher de cultura riquíssima. Sempre sonhando acordada com os ensaios do Madeira do Rosarinho (e encarnando a Madeira de Léi que Cupim não Rói), ligadona nas manchetes e detalhes do Bandeira 2 e Cardinot… e sempre fazia questão de nos informar das notícias mais quentes.
O rosto dela se iluminava todo quando falava da netinha… e ela não perdia uma oportunidade de tirar onda de meu marido quando ouvia a sirene da polícia, falando com aquele vozeirão grave e alto: “Se esconde, seu Nigel! É a poliça!!!”.
Mas a pérola que meu marido nunca esquece (nem eu) foi dita num almoço em família depois de discordamos em algo… “Casô?! Agora aguenta!!”.
Senti muito saber que a vida dela tinha sido ceifada por esse “desgoverno” brasileiro “miseravi”, como ela dizia, que nao tem empatia nenhuma por quem se rala todo pra ganhar um ou dois salários minimos por mês. Trabalhadores essenciais, forçados a se espremerem com o vírus nas lotações e comutas da favela (senzala) pras casas dos patrões (senhores de engenho). Levando o virus de um canto ao outro do Brasil, e compartilhando com as pessoas que mais amam - espero que a familia de Iracema esteja bem e salva desse pesadelo.
Esse desgoverno também nao tá nem aí pra quem, como Iracema, depende da pensão minguada do INPS, ou dos serviços médicos do SUS e não podem pagar Golden Cross, Sulamérica ou sabe lá mais o quê.
Iracema podia não ser letrada, mas era uma contadora de histórias de mão cheia.
Sou super grata pelo tempo de vida que ela dedicou e compartilhou com nossa familia…
Valeu o registro, GB.

Kennys Maziero disse...

Meus sentimentos e que Deus conforte a família.
Girley "GRATIDÃO " é uma virtude de poucos e essa você sabe pratica-la com maestria!!

Natália Carneiro disse...

Que bela homenagem pra dona Iracema. Que Deus a receba na espiritualidade fraterna e de luz. Meus sentimentos família que a acolheu e cuidou dela.

Wilma Reis disse...

Meus mais sinceros sentimentos, a vc Girley, e a Sônia . Com certeza , ela será sempre lembrada com muito carinho por vcs.

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