quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Cuidado! Tem Lobisomem na Praça

Eu faço questão de ter um café-da-manhã tranqüilo. Com suco, frutas variadas, café preto ou com leite e torradas com geléia e queijo branco. Enquanto isto, ouço – diariamente – a Ave-Maria de Gounoud, em tom bem baixinho. O CD nem sai do meu 3 em 1. Nunca. Ah! Leio os jornais do dia, também. É uma hora de tranqüilidade e preparação para o dia que começa, quase sempre, muito movimentado.
Minha tranqüilidade só é quebrada pela minha Secretária Doméstica, D. Iracema, que, freqüentemente, trás noticias de um mundo, digamos, quase cão, onde ele habita.
Outro dia, não posso esquecer jamais, chegou me dizendo que por lá (região pobre Recife, por trás dos bairros do Arruda e Água Fria) tem gente que quando morre, o corpo é jogado no canal por falta de dinheiro para um sepultamento, por mais simples que seja. Telefonam para a Polícia, que chega a seguida, levanta o corpo e enterram como indigente. Pense na minha cara. Fiquei abismado com essa realidade chocante. Francamente, não é um mundo cão? Fora disso, assassinato, prisão de maconheiro e assaltante, extermínio e estupro é rotina naquelas bandas.
Esta semana Iracema está em verdadeira polvorosa. Vive alarmada com uma novidade que se espalhou pela região, de que um lobisomem anda solto pela área, pintando miséria. Ataca a partir da meia-noite “Inté o raiá do dia!!!!” no linguajar dela. “E esta semana que tem noite de lua-cheia, o bicho vai pegar!” O curioso é que Iracema, coitada, tem uma prótese ocular no olho esquerdo – que, aliás, ela diz ser uma próstata (!) ocular – e, quando fala, arregala um olho só. É uma cena... “Tô cum medo de sair de noite e de vortá prá casa!”. Aconselhei-a que ficasse por aqui, para não cair nas garras do monstro. “ De jeito nenhum! Tenho que vortá pá tomá conta das minhas fias e netas. Esse danado de lobisomem tem sede de minina fema e mulé donzela!”
Confesso que fiquei dando corda no papo e conferir até que ponto chegava. Uma vontade danada de rir. Como é que pode? Em pleno século 21!
Segundo Iracema, os lobisomens são filhos amaldiçoados pelas mães. “Praga de mãe, pega que nem gripe, Dotô Giley.” E acrescentou: “Ou então, é no que dá dessas mulé severgonha que transam com cachorro e fica grávida de lobisomem”. Disse, com uma boca miúda, baixinho e cheia de pudor. Dei um pulo da mesa e me sai com algo, mais ou menos, assim: “Ah não! A Senhora, agora, foi longe demais! Que coisa mais feia! Eu não acredito numa sujeira dessas. Isso é outra invenção sua!”. “ Ôxi!, qué bem mi dizer que num sabe! É o que mais tem por aí. Inclusive essas mulé da alta, que o Sinhô conhece, que é rica e pode ter o homem que quiser, mas prefere um cachorro! E, quando o minino lobisomem naice, ela manda jogá na mata, porque ninguém vai querer um lobisomem sorto dento de casa. Tá pensando o que? O que mais tem no mundo, é mulé severgonha.” Aí, não tive jeito de segurar. Ri, como diz Geraldo Pereira, “à bandeiras despregadas”.
O imaginário popular é uma coisa fantástica. Em qualquer lugar do mundo se manifesta e cria essas figuras folclóricas.
Indiscutivelmente, estou falando de um traço cultural que, ao mesmo tempo, mobiliza as pequenas comunidades, em verdadeiras festas macabras, inclusive, ocasionando o surgimento de aproveitadores da inocência coletiva. Isso dá um trabalho daqueles à Policia.
São essas histórias populares do dia-a-dia, que entram pela porta da minha área de serviço e me surpreende na mesa do desjejum.
Na noite desta sexta-feira, com lua cheia, a Comunidade de Chão de Estrelas, onde vive Iracema e sua prole, vai se mobilizar para pegar o danado do lobisomem que anda solto por lá. Tem homem armado, de pau e pedra, por todos os lados. “ Tenho fé em Deus que vão pindurar o danido morto, num poste da praça!” Disse Iracema, cheia de esperança e confiança.
Até que ocorra essa emocionante captura, ela vai se apressar por encerrar o expediente dela, aqui em casa, correr assustada e se trancafiar num quarto, com as filhas e netas que, segundo ela, estão dormindo juntas e amuquecadas numa mesma cama. Mortas de medo! Aliás, ela garante que nem consegue dormir, porque fica “atucaiando a porta”.
Pensando bem, tenho que ser grato a essa figura do dia-a-dia da minha casa, porque ela é meu link com a realidade social do povão. É ela que me arrasta do alto da pirâmide social que vivo e me mostra – sem pena e cruelmente – a maneira de viver da gente humilde e desassistida.
Mas, por via das dúvidas, cuidado! O lobisomem está por aí... Não duvide! Que ele pegue e estraçalhe quem discordar disso.
Aliás, sabe de uma coisa? Para me precaver, vou recomendar a Sonia, minha mulher, que volte cedo do trabalho, de preferência com a luz do dia. Seguro morreu de velho!
Nota: Imagem colhida no Google Imagens

3 comentários:

Manuela Allain Davidson disse...

Ai que saudades das refeicoes no Rosarinho... hehehe!!

Bichinha de Iracema... Lobisomem ou nao eu odiaria estar na pele dela ou das mulheres de Chao de estrelas... se amoquecando dentro de casa, morrendo de medo de sair e sem ter pra onde fugir pra se proteger...

Anônimo disse...

AH! Girley... dona Iracema é prima de Isabé!
Anotarei no meu dicionário "amoquecar", fantástico!

Wilma disse...

Me diverti bastante.Tadinha da D.Iracema!

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