sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Eu não sabia que doía tanto

Quem diria que viveríamos dias de carnaval em clima de trevas? Parece mentira. Hoje poderíamos estar em plena folia. A Covid-19 fez silenciar os tambores e clarins de Momo, deste ano, deixando-os recolhidos nas sedes das agremiações. O Recife está mergulhado num silêncio inédito. Quando se é, de fato, bom pernambucano e que espera um ano para cair na folia carnavalesca, ao som do frevo rasgado e fazendo o passo da tesoura, amarga um momento de frustração e de puro ineditismo. Mesmo sem haver entrado nos folguedos, nos anos recentes, minha alma cultural não aguenta este silencio que hoje vive. Eu não sabia que doía tanto ficar sem carnaval. Para os quem vivem da economia e do movimento carnavalesco deve ser um verdadeiro calvário. A única alternativa que resta é curtir as lembranças do passado e alimentar a esperança para 2022. As velhas fantasias ficarão guardadas e as planejadas não saíram das gavetas. É emocionante o documentário exibido na TV e retratando a dor que dói no coração pernambucano. Quer saber, clique em: https://youtu.be/RSUK2m7u848 Ou copie e cole no navegador. Vale à pena.
Falando das lembranças recordo da minha infância carnavalesca com orgulho e com saudade. Minha mãe, grande foliã, preparava os filhotes, com antecipação, para viver o tríduo momesco com todo brilho e emoção. Lembro, como se hoje fosse, da bolsinha de filó por ela confeccionada na qual cada um guardava com cuidado sua cota de confetes coloridos, somente compulsados quando da oportunidade em que alguém merecedor de um punhado aparecia pela frente. Era um gesto inocente de declarar amor e amizade. E fazíamos sem perceber o sentido exato daquilo. Quanto lirismo! O álbum de antigas fotos da minha mãe está recheado de índios, palhaços, holandesas, bailarinas, pierrôs, entre outras figuras que enchiam de sonho as cabeças das crianças que fomos. Fantasias e ilusões que na quarta-feira eram guardadas esperando outro carnaval chegar. Ah! Lembro também do lança-perfume da marca Rodouro, na sua embalagem metálico-dourada e símbolo de status da época. Cada um recebia um tubo do tamanho infantil com a recomendação de ser parcimonioso no uso para durar o carnaval inteiro. Eu administrava aquilo com o maior cuidado para durar os três dias. Por trás disso, aliás, uma lição de saber não esbanjar. Do janelão da casa dos meus avós paternos, no velho bairro de São José (Recife Antigo), assistíamos ao desfile do corso, na versão tradicional, dos blocos carnavalescos e maracatus. Era uma festa de rua que enchia nossos olhos infantis. Uma lição de cultura a cada instante. Pensando bem, é natural sentir a dor provocada pela falta dos clarins e das orquestras de frevo que sentimos neste ano corrente.
Mas a saudade dói também quando me lembro dos inesquecíveis bailes de carnaval dos nossos clubes sociais nos anos 70, 80 e 90. Aquilo era verdadeira apoteose. Como era bom. Um dos mais estrondosos era o carnaval do Clube Internacional do Recife que explodia de alegria nas quatro noites de festas. Fantásticas orquestras - como as de Nelson Ferreira e José Menezes - se revezavam no palco e se constituíam em verdadeiras usinas de animação. Noites com mais de vinte mil pessoas, espalhadas pelos salões, jardins e parques do clube, a cantar e dançar até o dia raiar. Foram dias de gloria. Quem viveu sabe contar direitinho. O tempo passou e mudanças ocorreram. O Recife cresceu, virou uma metrópole e o carnaval se tornou uma festa mais popular ainda do que no feitio das antigas. Saiu da fase dos salões de clubes sociais e ganhou as ruas, com forte esquema politico-comercial. Isto nem sempre bem visto. Contudo, as raízes foram preservadas e continuam muitos vivas. Ritmos alienígenas tentaram sufocar o frevo rasgado, mas, ficou claro que este ninguém abafa. Ao mínimo sinal a multidão se agita, o sangue pernambucano ferve e a povo enche os pulmões quando conjuga, com orgulho e muita alma, o verbo frevar. Tente ficar parado ao escutar os acordes do frevo- de-rua Vassourinhas, verdadeiro hino do carnaval pernambucano. Duvido. Tudo é verdade e nunca passou, por qualquer cabeça, que um dia um vírus venenoso pudesse dar um basta. Tomara que seja apenas uma pausa. Dói. Dói demais e eu não sabia que doía tanto. Nota: Fotos ilustrativas colhidas no Google Imagens

18 comentários:

Olinda Sivaldo disse...

Eu tbm ñ sabia que doía tanto!!!

Claudio Targino. disse...

Só melancolia.

José Paulo Cavalcanti disse...

Pausa, com certeza. E nem notei, amigo. Que passei na praia, como todos os anos. O vírus, pois, bateu mais em alguns. Como o mestre Girley. O que foi até bom. Que lhe deu essa bela crônica. Abraços.

Girley Brazileiro disse...

Peraí José Paulo! Eu não tive Covid, graças a Deus. Vai ver não me fiz entender bem... kkkkkk

Augusto disse...

Verdade muito dificil a situação.

Vanja Nunes disse...

Muito lindo o texto.

Gil Martins disse...

Verdade Girley!!!

Thereza Leal disse...

Girley quase choro com o que vc escreveu com tanta propriedade parabéns revivi toda minha juventude Obrigada

Girley Brazileiro disse...

Thereza Leal, confesso que chorei ao escrever este post. Senti a força saudade. Daí o título do post.

Celso Cavalcanti disse...

Já li de um economista que após a vacinação, ocorrerá na economia um "estrondo supersônico", com o desrepresamento do consumo contido. Se ele estiver certo e a nossa espectativa de timing for atendida, o Galo do próximo ano atingirá o nível máximo na escala Richter.

Francisca de Freitas disse...

🤓🤿🤩🥸Muito bom, Dr. Girley, o carnaval deste ano é só recordação. Mas esperamos que seja só uma pausa mesmo. Que venha 2022 e o carnaval como antigamente .

Antônio José de Melo disse...

Bom dia amigo Girley, Muito bom e oportuno o assunto abordado aliado ao seu bom texto. Não querendo ser saudosista, mas sim, viver a realidade dos tempos; Lembro bem dos sábados de carnaval em tempos onde tudo era folia; alegria; fantasia; encontros; frevo e ritmos alucinantes, que nos levavam a passar quatro dias dias de carnaval, enebriados. Pela primeira vez na vida estamos vivenciando algo, nunca antes imaginado, “Um Ano Sem Carnaval.”
Os estudiosos e intelectuais, afirmam que o valor das coisas só são percebidas e sentidas, no contraste. Aqui, o contraste entre a tradicional alegria do carnaval e o silêncio, específico de hoje, mostra os porquês, dessa grande festa. Esse é um momento de reflexão e gratidão. O mundo está mudando o seu conceito. No silêncio que contrasta com o barulho dos sons e alegria, dos carnavais, temos a oportunidade de viver algo novo e entender que é no novo e, no desconhecido, onde encontram-se todas as possibilidades. Quem Sabe......

Restony de Alencar disse...

Ímpar e impecável comentário desse menestrel Pernambucano @girley. As "usinas de animação" muito original

Arnaldo Moura disse...

Excelente!

José Otávio de Carvalho disse...

Uma crônica linda lembrando o estilo melancólico de Antônio Maria. Texto melancólico e muito bem tecido. Até eu que nunca fui folião me emocionei. Parabéns amigo.

Daniella Miranda. disse...

Excelente Girley muito bem ! Adorei ! Saudades também dos velhos tempos.

Celso Miranda disse...

Muito boa sua matéria.Que tempos bons. Li também ontem a matéria do JC de Gustavo Krause sobre o Galo.

Sônia Chalegre. disse...

Girley,chorei quando li seu post sobre o carnaval,revivi toda minha infância e adolescencia.Eu não sabia que doia tanto relembrar o carnaval .saquinhos de filó,o lança perfume rodouro, maravilhoso.

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