segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Chaga Social

Na semana que findou permeada, como sempre, de altos e baixos políticos, um assunto abriu espaço  e ocupou as diversas mídias celebrando o que denominam de Dia Consciência Negra e jogando luzes num assunto mal resolvido neste país: o preconceito racial. Na verdade, uma verdadeira chaga social que se arrasta por séculos. O Brasil foi o último lugar nas Américas a abolir o sistema de escravatura, em 1888. 
Nesses 130 anos de abolição, a escravidão ainda rege muitas relações sociais, particularmente, nos grotões afastados do vasto território nacional. Alimentado pela tradicional sociedade hipócrita, bem como por razões comportamentais dos próprios indivíduos de raça negra. Um exemplo que não sai da minha lembrança foi o caso da babá de um dos meus filhos, negra retinta de traços angolanos, que foi ao Bloco do Galo da Madrugada e voltou se maldizendo porque o único paquera que se meteu "arrastando asas" pra ela era um negão beiçudo. "Gosto lá de nego", disse cheia de nojo, quando voltou da folia. Foi o bastante para confirmar minha ideia de que os próprios negros magoam a chaga que os condenam. Aliás, todo viu que Michael Jackson nasceu negro e morreu branco...   
Outra lembrança viva que tenho foi que, na minha infância, tive uma professora negra, Dona D´Lourdes, que soube ter dignidade, autoridade e competência para transmitir conhecimentos básicos de matérias elementares, além de respeito ao próximo, civismo e muita educação social. Foi uma pessoa marcante na minha vida, sobretudo porque me fez entender, na tenra idade, que negro é gente igual a qualquer outro ser humano, independente de cor da pele. Diante desses episódios que vivi, sou daqueles que discordam da denominação que se deu no Brasil de Dia da Consciência Negra (Lei 12519 de 10/11/2011). Melhor seria Dia da Consciência Humana. Questão de marketing.
Políticas governamentais especificas, campanhas educacionais, condenações diretas, entre outras medidas, não têm sido suficientes para liquidar este estigma tão arraigado no ambiente popular da nossa gente.
Por coincidência e bom para que minhas reflexões sejam mais bem aprofundadas, estou acabando de ler a obra recém-publicada, Escravidão, Vol I, de Laurentino Gomes – que muito recomendo – onde encontrei minuciosos relatos sobre o tema, frutos de pesquisas do próprio autor e de estudiosos antigos e contemporâneos. São relatos muitas vezes aterradores e indignos. Atitudes que terminaram forjando essa aberração social, sobretudo nas Américas. O caso norte-americano é bem conhecido e se tornou emblemático. E no Brasil, muito embora se use cinicamente uma máscara de convivência pacifica e sem preconceitos, o negro é sempre tratado como gente de segunda classe. Em tudo e por tudo. Raríssimos se salvam do estigma. 
Segundo Laurentino Gomes, nossos ancestrais, afinal todo brasileiro tem um pé na senzala, eram apanhados como gado nos confins africanos, sendo apartados da sua gente, familiares e cultura. Obrigados a longas caminhadas, acorrentados pelo pescoço, em duplas e sob sol causticante, até o litoral do continente, onde armazenados e fortemente vigiados aguardavam serem embarcados nos muitos navios negreiros com destino aos portos das Américas e Caribe. Muitos morriam nas longas caminhadas ou nos trajetos marítimos. Conta-se que tubarões já acompanhavam as embarcações a espera voraz dos frequentes arremessos de cadáveres ao mar. Antes da partida eram batizados, mudavam de nome e marcados com ferro em brasa, no peito direito, tal como se marca um animal hoje em dia. Pior, com as vênia e bênção da Santa Igreja Católica que, em nome de Deus,  juravam estar salvando as almas perdidas dos negros. Em terra eram leiloados como bem de capital da época, tanto quanto é hoje um trator, um arado, uma colheitadeira ou outro instrumento agrário qualquer. Era, portanto um ativo descartável, logo que perdesse sua capacidade de produção. Quanto mais jovem e bem entroncado, mais valor. As mulheres eram exploradas sexualmente pelos comandantes, imediatos e marujos das naus negreiras durante o percurso e quando leiloadas, em terra, se tornavam usadas como objeto sexual e empregadas em diversos afazeres leves ou pesados. Muitas serviam como domésticas (mucamas) nas casas dos seus proprietários. 
Portugueses e brasileiros foram os mais ferozes e cruéis traficantes de escravos tirados sobretudo da atual Angola e da Guiné para as terras do novo mundo. Seguramente que, sem a força de trabalho escrava, as culturas de açúcar, algodão e outros cultivos menores do Nordeste, centrados em Pernambuco, não teriam alcançado progresso que alcançaram, a ponto de sustentarem a Coroa portuguesa por séculos. Se os produtos acima citados fizeram a propulsão do comercio entre a Colônia do Brasil e a Europa, muito também tem do que se registrar sobre o comercio de escravos realizado por ingleses e holandeses. Eric Williams (in Escravidão I, de GOMES, L.), professor da Universidade de Oxford, falecido em 1981, garantia que o comércio de escravos no Caribe teria sido suficiente para financiar a Revolução Industrial inglesa no final do século XVIII. Pode ter sido um exagero, mas, pode dar uma ideia do fabuloso negócio que se fazia naqueles tempos.
Um registro curioso é que, apesar das tentativas de impor ordens e dura legislação ao tráfico, somadas à alta carga tributária que a Coroa Portuguesa determinava aos que realizavam o comércio de  escravos, já ocorria imensa corrupção no meio desses negócios. Senhores de engenhos de açúcar, por exemplo, encomendavam bons escravos e improvisavam portos clandestinos para recebê-los livres de impostos. Contrabando. Mangaratiba, no Estado do Rio, e Porto de Galinhas, em Pernambuco, são lembrados como pontos desses desembarques clandestinos. Ou seja, nossos corruptos de hoje trazem, certamente, do berço esses "edificantes hábitos".
Falta muito e muitas gerações para que essa chaga social se dissipe e tenhamos uma sociedade mais humana e mais digna. O Brasil ainda deve muito a esses bravos irmãos afro-descendentes. Dívida difícil de ser paga.     

NOTA: Ilustração obtida no Google Imagens.

6 comentários:

Fabiano Toquetão disse...

Sensacional Girley
Visão explícita e realista da nossa história e do nosso preconceito histórico.
Muito bom o texto, sei que é redundante falar de sua habilidade na escrita das boas ideias, sempre preenchendo minhas lacunas . Você descreve meus pensamentos!

Jose Paulo Cavalcanti disse...

Belo texto, neguinho. Abraços de um devoto.

José Artur Paes disse...

Girley, por feliz coincidência, o foco do programa Roda Viva que terminou a pouco foi o livro de Laurentino Gomes foi sobre o livro dele ESCRAVIDÃO que analisa esse assunto mundialmente...

Corumbah Guimarães disse...

Realmente o negro no Brasil tem um passado de muito sofrimento. Mas o racismo é muito maior e pior que isso, pois vemos na Europa o racismo contra imigrantes, nos EUA contra latinos, no Oriente contra católicos, e por aí vamos. Veja que o racismo começa na primeira infância, por culpa dos pais. Os negros também são racistas, e extremos! Dá muita conversa, esse tema. Acho que racismo diminui com a convivência, mas, hoje, qual convivência os meninos têm fora das escolas? Eu brincava na rua com todo o tipo de gente, não havia nenhuma discriminação. Onde existe isso hoje?

Newton de Melo disse...

Parabéns, Girley, pelo seu editorial "Chaga Social" e pela recomebdação do livro de Laurentino Gomes. Vou procurar comprar e ler.

Mário Chaves disse...

Caro amigo seu artigo esta pra la de bom com apenas uma falha, em não relatar que as fazendas do Ceará em especial a lavoura de cana, independente da lei, libertou em primeiro lugar no Brasil seus escravos, bem antes da década de 88 em ressonância com o Grito do Dragão do Mar, que declarou que nenhum barco de pretos atracaria no "paredão" e que nenhum escravo desembarcaria jamais no calçadão marítimo de Fortaleza de N. S. da Assunção.Isto é nosso orgulho, é um Estado com menor numero de descendentes escravos e a miscigenação foi rápida. Quando eu era criança eu ia todos os dias a tarde levar um bulhe de café para Da,. Genoveva com quase 100 anos, ex escrava e descendência pobre, mas estudada e a Emília sua filha, tocava piano muito bem as valsas da época. Como ela via muitos mulatos, ela não gostava dessa gente e dizia: nos temos Pretos e Brancos assim como Deus fez o café e o leite. O homem misturou e não prestou, detesto estes caboclos escuros sem identidade. Um abraço. .

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