domingo, 13 de novembro de 2022

Rouxinol Encantado

Decorria o ano de 1973. Uma inquietação coletiva dominava a sociedade brasileira, oprimida pela dureza da ditadura militar, que se mostrava cada vez mais sufocante. Sem dúvidas, foi uma época na qual vivi momentos dos mais agitados da minha juventude. Passei o ano inteiro e alguns meses seguintes vivendo em São Paulo, enquanto cursava uma pós-graduação de Economia, na USP, foco destacado de movimentos politico-culturais dos mais vibrantes da vida brasileira. Para lá corriam as mais brilhantes cabeças pensantes do país que se juntavam às lá nascidas para expressivos gritos de liberdade e protestos ao regime militar reinante, prestes a completar seus dez anos de vigência. Decidido a viver a vida e buscando a cura para uma rebordosa afetiva entreguei-me, de corpo e alma, ao desvario da paulicéa. Foi paixão a primeira vista que, aliás, alimento até hoje. Se o movimento politico dinâmico-estressante era tônico, resistente e sempre presente, o mesmo – sem a variável estressante – era de se registrar quanto a desenvoltura cultural daquela metrópole. Bom... havia uma mescla de tudo que um estudante nordestino precisava para viver uma rotina sonhada e muito desejada. Além de tudo parecer novo, era fascinante. A meu ver, outro Brasil. Menos provinciano e mais futurista. Um lugar onde tudo acontecia e determinava os rumos nacionais. Foi um tempo, por exemplo, em que eclodiam nomes cujos propósitos eram de reescrever a nova musica popular brasileira. São doces recordações em momentos de “choque” como os vividos na semana finda, com a repentina “promoção” à eternidade da musa da Tropicália dos anos 70, a notável Gal Costa.
É sobre Gal que dedico este post semanal. Maria da Graça Penna Burgos Costa, nasceu em Salvador (BA) em 26.09.1945. Desde jovem descobriu seu caminho de cantora e resultou num dos mais estrondosos sucessos da música nacional e internacional. Sua presença num palco era pura adrenalina. Essa “promoção” à eternidade deixa o mundo artístico mais pobre e carente de explicações sobre essa infausta ocorrência. Por que tão cedo...? Sem tempo para se despedir, Gracinha partiu e provocou um vazio somente preenchido ao fazermos rodar seus sucessos gravados nos diferentes aparatos eletrônicos do mundo moderno. Minha escolha foi, a proposito, pelos velhos LPs da vida de antanho. Neste momento de lamento, lembro-me agora da minha primeira visão do furacão Gal, naquele 1973, quando corri para assistir ao show de lançamento do seu revolucionário álbum Índia num teatro paulista. Não recordo qual, exatamente. Plateia lotada, ingressos disputados e oferecidos por cambistas na entrada. Consegui um bom local e pude assistir quase no gargarejo. A estrela entra e abala o público. A canção tema era a velha e muito explorada por nossos avós. Quem não conhecia de antes (pouco provável) passou a solfejá-la dia e noite a partir dali. “Índia teus cabelos nos ombros caídos/ negros como a noite que não tem luar...” Gal começou num tom baixo e quase murmurante. Na repetição da execução, subiu uma ou duas oitavas (dobro da frequência da voz) e atacou com sua possante garganta. Na poltrona, onde alojado, senti certo tremor e fiquei esperando um desafino. Puro engano... o que assisti foi algo que me levava a crer ser impossível. Não era um ser humano a cantar. Era uma voz cortante e vibrante. Aliviado com o sucesso, fechei os olhos e pensei ouvir um rouxinol cantando. Coisa admirável. Inesquecível. Desde então aprendi a ouví-la potente e capaz de fazer mágicas sonoras sem “parea”, como se diz no meu nordeste, acreditando ter fôlego e desenvoltura. Se a voz era aquele deslumbre irretocável o mise-en-scene exibido era outro ponto de destaque. Jovem e cheia e vida, Gal, aos 28 aninhos de vida, se esbaldava na plástica que ostentava. Trajando modelo audacioso e resumido, a baiana mostrava o que é que a baiana tem, de uma vez por todas. Ela capitalizava o que um corpo feminino tem de mais ousado e fascinante. Suada, ao fim do show, a testa era uma cascata umedecendo a vasta cabeleira encaracolada que, inutilmente, tentava esconder os mamilos entumecidos da musa, sintonizada eroticamente com um público em êxtase. Haja competência... Na saída do teatro comprei uma fita cassete, com as musicas da exibição, e voltei para casa ouvindo no toca-fitas do meu fuscão. Lembro que a fita ficou sendo rebobinada incontáveis vezes e aquela noite ficou gravada na minha memória, para, sem planejar, relatar nesta postagem de hoje. Detalhe: a capa do álbum Índia foi motivo de rolo com a censura da ditadura, devido ao apelo erótico da foto. O LP e o cassete eram vendidos com uma capa extra e o comprador só a retirava depois de adquirido. Fuxico grosso, à época. Vide a foto a seguir.
Gal Costa me proporcionou outros maravilhosos momentos quando assisti suas apresentações talvez mais vibrantes, dada a maturidade da mulher e da voz. Uma ocasião foi no Rio de Janeiro (Teatro dos Quatro – Shopping Gávea – 198...), oportunidade em que o vozeirão explodiu em Festa no Interior e Brasil, Mostra Tua Cara. No Recife, onde ela se apresentava com frequência, vi Gal no Teatro do Parque, numa das edições do Projeto Seis e Meia, final dos anos ´70. Além dessas musicas mais celebradas e cheias de movimentos, Gal nos presenteou com paginas musicais que marcam minha memoria de admirador da musa. Entre essas me lembro de três bem especiais: Chuva de Prata (Ed Wilson e Rinaldo Bastos) Um Dia de Domingo (gravada com Tim Maia) e Nada Mais (versão da musica Lately de Stevie Wonder). Agora, como manda a natureza, nosso Rouxinol se Encantou. Resta sua obra e sua memoria. A Internet nos ajuda com esta memoria. Clique, por exemplo, em: https://www.letras.mus.br Lá você vai buscar As quinze melhores músicas de Gal Costa, musa da Tropicália- Letras. NOTA: Foto ilustrativa colhida no Google Imagens e arquivo particular.

10 comentários:

Susana Gonzalez disse...

No la conocía, pero la busqué con esta noticia y con gran satisfacción me encontré con una gran cantante. Lástima su muerte, pero vivirá siempre.

Fabiano Toquetão disse...

Sensacional!

Mauro Ramos disse...

Gal marcou cada um de nós.

Nininha Brasileiro disse...

Bela reportagem sobre a nossa queridA Gal Costa ela merece este grande homenagem grande cantora.

Romero Marques disse...

Parabéns meu amigo, pela narrativa da trajetória de Gal Costa fantastica Gal, saudades desse vozeirão. Abraço amigo Girley

darlan disse...

Que texto, Girley. Não tive esse privilégio de ouvi-la ao vivo nessa fase. Mas que inveja. Mesmo no YouTube, que foi o que me restou, ouvir a interpretação de Índia de Gal é de arrepiar.

Jorge Fernando de Santana disse...

Parabéns, Girley, pelo belo texto sobre essa extraordinária cantora brasileira. Parabéns pela memória que o acompanha, com tanta riqueza de minudências. Parabéns pela forma elegante da sua recuperação e comunicação de tantas e tão saborosas lembranças de Gal. Você conseguiu fazê-la ainda mais admirável, mais apaixonante e mais amável. Saudade desse "rouxinol (agora) encantado".

Édson Junqueira disse...

Gostei e mantenho até os dias de hoje e a escuto em disco vinil.

José Paulo Cavalcanti disse...

Viva Gal. E viva Girley. Abraços lisboetas.

José Otávio de carvalho disse...

Texto escrito com a razão e com o coração. Você transmitiu com maestria sua emoção. Uma bela homenagem a essa musa de nossa cultura musical.

Haja Cravos

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