terça-feira, 9 de agosto de 2022

Salve o Negro Brasileiro

Sempre me dei muito bem convivendo com pessoas de cor negra. Acredito que tudo começou na minha infância quando meus pais decidiram matricular-me, aos sete anos, numa escola particular, muito comum à época, onde uma família de negras professoras se dedicavam ao ensino primário. Mudaram-me de um colégio de freiras, no qual pouco progredi embora haja aprendido a rezar muito e onde fiz primeira comunhão. As professoras afrodescendentes, do Externato Santos Cosme e Damião, eram enérgicas e competentes no ensino do “be-a-bá” exigido àquela época. Aluno sempre aplicado fui logo cercado de afetos, admiração e afagos por Dona D´Lourdes, minha mestra, por quase quatro anos. Aquela negra, embora sempre circunspecta, me encantava e me fez perceber os mistérios de um mundo, no qual eu vivia, em que ter pele negra transformava o individuo em cidadão de classe inferior. Quanta dignidade havia naquela família de negras professoras comandando classes cheias de alunos predominantemente de raça branca e com condições financeiras para remunerar a escola que mantinham. Belos aprendizados recebi: formal e cívico Estas reminiscências de hoje são provocadas por lastimáveis episódios que, com frequência, ainda testemunhamos, neste inicio de século 21. Nos dias recentes, aqui no Brasil, dois fatos tomaram conta da mídia e jogaram luzes sobre o renitente preconceito de cor que se vive no chamado estado democrático brasileiro. O primeiro foi o da “mulher da casa abandonada”, numa zona nobre e tradicional da cidade de São Paulo. Virou atração turística. Todo mundo queria saber quem era aquela misteriosa mulher, depois identificada como sendo uma tal de Margarida Bonetti, foragida da justiça norte-americana por manter em regime de escravidão, por 20 anos, uma empegada doméstica. A sujeita não chegou a ser julgada pela justiça americana, não foi presa e, mais do que isso, conseguiu fugir para o Brasil no ano 2000, onde se trancou até hoje no casarão que herdou. Descendente de uma família rica e poderosa da pauliceia exercia a habitual exploração de serviçais negras, tratadas historicamente como um bem de capital. A negra vitima dessa atrocidade vive ainda nos Estados Unidos gozando de cidadania e direitos civis, muito embora as restrições sociais que, como todos sabemos, ainda perduram na Terra de Tio Sam. O outro caso que ganhou espaço no noticiário e correu o mundo foi o da senhora portuguesa que tratou de modo pejorativo e desprezível os dois filhos, adotivos e negros, dos atores brasileiros Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, num restaurante de uma praia nos arredores de Lisboa, onde passam temporada. O caldo engrossou por lá e a atriz Ewbank, desempenhando seu inesperado papel de mãe vigilante e furiosa, enfrentou a agressora de modo direto e, segundo relatos, desferiu um belo tapa na agressora! A portuguesa preconceituosa foi chamada à responsabilidade e está embalada em maus lençóis. Bom, foram dois fatos ocorridos lá fora, embora que corriqueiros no Brasil de agora. Para fechar minha semana, e esta edição do Blog, fui parar no lançamento do terceiro volume da trilogia Escravidão do jornalista escritor Laurentino Gomes. Eis aí uma obra que recomendo ser lida por todos os brasileiros. O autor dedicou-se por anos a uma profunda pesquisa sobre o tema escravidão nas Américas e terminou produzindo três volumes de formidáveis relatos sobre o assombroso regime escravista nas Américas e que arrastou o Brasil ao último país a proclamar o fim da escravidão no chamado Novo Mundo, em 1888, ao contrário de países como México, Chile e Bolívia já o haviam proclamado entre 1818 e 1840. Essa tardia passagem histórica e sua difícil assimilação pela aristocracia escravista prevalecente, à época, num império de “rabo preso” a essas elites resultou na formação de uma sociedade preconceituosa e de tal forma arraigada que, até hoje, em pleno século 21, produz cenas de insanidade, desumanidade e pouco democráticas contra sua imensa população negra.
Estima-se que algo próximo a 5 Milhões de homens, mulheres e crianças foram trazidos da África para o Brasil, como escravos, entre os séculos 16 e 19. Ora meu Deus, impossível pensar que essa população não se reproduzisse e formasse essa multidão, inclusive miscigenada, que provoca tantas controvérsias sociais no atualmente. Laurentino Gomes descreve na sua trilogia uma História apaixonante, dolorosa em certos capítulos, mas, vibrante em termos de registro. Para ele, “a Historia é um instrumento para construção de uma identidade e formação de cidadania”. Concordo. A formação da cidadania brasileira deve aos afrodescendentes suas mais sólidas bases e coloridas nuances. Respeitemos e honremos essa herança. Salve o Negro Brasileiro!

Um comentário:

Laís Viegas Vanzuela disse...

Muito bom o seu artigo! É mais uma bandeira içada em favor dos nossos
Irmãos negros, tão maltratados por outros irmãos, que só veem valor na pele branca e nos muitos centavos que alguns têm! Pouco a pouco, esses gritos meio sufocados vão compondo um vozerio, que algum dia já não
Seja tão necessário! Abraços.

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