terça-feira, 18 de março de 2008

Origens de uma Paixão

Todo ano é a mesma coisa. Quando chega a Semana Santa e abre-se a temporada das paixões de Cristo, em Pernambuco, multiplicam-se as noticias e crônicas sobre esta ou aquela produção, particularmente sobre o pioneiro espetáculo de Fazenda Nova, no considerado maior teatro ao ar livre do mundo, em Nova Jerusalém.
Neste caso, as versões têm tido, na minha opinião, altos e baixos.
Nesses baixos, os cronistas terminam por negar ou, apenas, citam en passant, o nome de Epaminondas Mendonça, como idealizador, escamoteando passagens da rica historia, uma verdadeira saga, do Clã dos Mendonça, ao qual pertenço, com muito orgulho.
Falo de uma história que não pode ser negada à sociedade pernambucana.
Sofro ao ver, paulatinamente, ser apagado dos registros da mídia, a original história do espetáculo de Fazenda Nova, empurrada, cada vez mais, no “baú do esquecimento”.
Antes de qualquer coisa – e por uma questão de lisura – devo registrar minha admiração pelo fantástico idealismo, perseverança e fibra de Plínio Pacheco ao fazer brotar nas áridas terras de Fazenda Nova a majestosa obra que é Nova Jerusalém. Sem aquilo lá, a velha Paixão de Fazenda Nova não seria viável. Não teria chances nas ruas do Distrito. E, certamente, Fazenda Nova nada seria.
Acontece que, antes de Plínio Pacheco aparecer pelos costados da Serra do Cachorro, se apaixonar pela minha tia Diva Mendonça, roubá-la (naquela época, isso era comum e emocionante) jovem e linda, para casar, voltar e assumir aquele fantástico projeto, Fazenda Nova já tinha seu clima de paixão instalado e uma indiscutível vocação para o que depois aconteceu.
Desde os anos 30, a casa da família Mendonça era um verdadeiro laboratório teatral, onde se forjavam – artesanal e ingenuamente, mas, com imenso amor à arte – cenas teatrais únicas, naquele meio de mundo agreste e isolado. Passagens da história do Brasil ou da chamada História Sagrada eram motivos de enredo de peças e esquetes, levados a um público que afluía dos sítios, fazendas e pés de serra, para assistir atento o que atores, sempre de sobrenome Mendonça, comunicavam num modesto palco. Era uma escrava açoitada, no dia 13 de maio, ou um bizarro D. Pedro, sem cavalo e sem riacho Ipiranga, a bradar Independência ou Morte, todo sete de setembro, ou o Martírio de Santa Filomena. Cenas perdidas no tempo que não parou e preservadas, apenas, nas poucas memórias vivas. Delicioso e emocionante, além de pedagógico, para um povo carente, sofredor, esquecido e analfabeto, que, por uma ablução de sorte, terminou sendo educado através de cenas teatrais.
Foi neste laboratório liderado pela matriarca, D. Sebastiana Mendonça, minha avó materna, secundada pelos seus filhos e filhas, que nasceu o chamado, à época, Drama do Calvário.
Conversando, um dia desses, com minha tia Nair Mendonça Travassos, a primeira atriz a desempenhar o papel de Maria, mãe de Jesus Cristo, emocionei-me ao escutar seus relatos sobre o nascer dessa Paixão: Epaminondas Mendonça, meu avô, chefe do Clã, leu, no início dos anos 50, uma reportagem sobre certo espetáculo da Paixão de Cristo, em Oberamergau, na Alemanha [1], provocando um alvoroço no laboratório teatral caseiro, para o qual ele dava pouco crédito, absorto muito mais nas lides políticas, um tipo de paixão que lhe trazia mais aprazimento do que o teatro.
Nair e Luís Mendonça – este logo assumindo o papel do primeiro Cristo, a ser “cravado” na cruz de Fazenda Nova – filhos de Epaminondas e Sebastiana, encasquetaram e não pensavam noutra coisa a não ser escrever, produzir e executar uma grande produção teatral, a qual logo deram o título de Drama do Calvário. Rigorosamente, foram eles dois os “pais” desta obra, que orgulha Pernambuco e o Brasil. Puro idealismo, indiscutivelmente, tão grande, quanto o de Plínio Pacheco, dez ou quinze anos depois, ao abraçar a construção de Nova Jerusalém. O que eles bolaram naqueles primórdios, justiça se faça, foi de importância fundamental para o que se tem hoje.
Aos dois foi se juntando o restante da família e, claro, D. Sebastiana – mulher de opinião firme, enérgica nas atitudes e cheia de criatividade teatral – rápido tomou para si a missão de arregimentar novos atores, meios e condições para transformar as idéias em pura realidade. Virou, digamos, diretora do espetáculo e, de cara, enfrentou as resistências do velho Epaminondas, temeroso com os custos da produção e, por isso mesmo, nomeado, por ela, produtor do Drama. Nascia, então, a Paixão de Cristo de Fazenda Nova, com nomes desconhecidos do grande público, entre os quais Paulo, Geni, Diva, José, Marly e Ilva e quase todos os outros Mendonça, da época, inclusive o próprio Epaminondas, que fez o papel de Caifás, no primeiro espetáculo, atuando, ainda, como contra-regra. Outros atores foram mobilizados no Recife e em Caruaru. Além, é bom lembrar, dos figurantes convocados na região.
Falar, hoje, do sucesso da empreitada é totalmente desnecessário e indiscutível. Quando vejo o que agora acontece – sob a competente batuta de Robinson Pacheco, filho de Diva e Plinio – recordo com desvelo os pioneiros que já partiram para a eternidade. É para eles que, a meu ver, vem faltando o justo preito de gratidão! Um povo sem memória é um povo sem história. Por isso, Ave César! no palco de Pilatos, loas à pirotecnia da ressurreição e aplausos aos astros globais, mas sem esquecer, jamais, os apaixonados pioneiros.

Fotos: Paixão de Cristo atual e meu avô, Epaminondas, dias antes de falecer em 1970, colhida no Google Imagens

[1] Em Oberamergau a Paixão é encenada, em imenso teatro, a cada dez anos, e serve para cumprir uma promessa feita no século XIX pelos habitantes da região ao se livrarem de uma peste que arrasava imensos contingentes populacionais da Europa. Em 1975, fui recebido pelos produtores locais, no próprio teatro da Paixão, que já colecionavam documentos jornalísticos falando da Paixão de Fazenda Nova.

10 comentários:

Anônimo disse...

Girley, você tem toda razão quando fala desse esquecimento da mídia sobre os fundadores da Paixão em Fazenda Nova. Lembro-me muito bem meu cunhado Dr.José Julio Trindade e minha irmã Ada anos e anos atrás irem assistir a Paixão de Cristo quando ainda era realizada nas ruas humildes da cidade. Como vinham renovados e maravilhados com a interpretação dos artistas moradores locais. O Sr. Epaminondas,o Plínio a Diva deveriam ser mais lembrados nas brochuras e nas reportagens que fazem sobre Fazenda Nova. Acho que se não fosse o esforço e o talento deles nada desse grande espetáculo existiria. ana maria menezes

Geraldo Pereira disse...

Girley Brazileiro, com "Z", disse, de logo, ao nosso Hullak (é esta a grafia?), dessa vez você conseguiu superar-se. A crônica sobre a Paixão está ótima, gostosa de ser lida, histórica e afetiva. O seu avô começou tudo isso, depois de ter lido a matéria sobre o canto ou o recanto alemão e depois você próprio apareceu por lá, nas friorentas paragens. A família continuou, Plínio apaixonou-se - sentir paixão está no Aulete - por Diva, a sua bela tia e deram continuidade à saga. Mas, como sempre sucede, esqueceram o pioneirismo do seu avô e de sua avó, nomeados produtores, ambos.
Parabéns homem de Deus!

Anônimo disse...

Geraldo,
Como é bom ter amigos, sobretudo, quando da sua linhagem. Fiquei sensibilizado com o seu comentário.
Feliz porque alguém me deu razão e porque achou gostoso ler o texto.
Quando a gente faz com amor, o texto sai bom. Ou, mais ou menos... como este de hoje. Tirei de dentro da minh´alma. Obrigado Homem de Deus! Meu abraço e feliz páscoa. GB

Anônimo disse...

Girley

PARABÉNS pela HISTORIARIZAÇÃO de Fazendo Nova – com memória e coração.

José Artur

Anônimo disse...

Girley,

Parabéns, ficou muito lega!
É essa a razão de tanto talento, vem de berço!
Bjs,
Osangela

Anônimo disse...

Girley

Muito bem! Vamos dar a Cesar o que é de Cesar! Todas as vezes que vejo na TV a propaganda do teatro de Fazenda Nova e ouço apenas a menção a Plínio Pacheco fico pensando com os meus botões: e o velho Epaminondas e a sua D. Sebastiana? E Lourinho? O Cristo que foi mostrar o seu talento no Centro-Sul e arrebatou prêmios significativos para o teatro brasileiro?Isso sem falar nos outros, da Ilva que continua o seu show nas novelas da Globo, e da propria Diva. É certo que Plínio desenvolveu, ampliou e aperfeiçoou o espetáculo, mas se não fôsse a semente, já germinada, plantada pelos Mendonça, certamente o Espetáculo de Fazenda Nova não existiria. O casal também merece uma estátua como testemunho da história e homenagem mais do que justa. Lembro muito bem da sua viagem à Oberamergau, do material fotográfico que você levou, e sucesso do seu contato com os de lá. Gostei! Um grande abraço, Leony

Anônimo disse...

Meus amigos,
Fico muito sensibilizado com os comentários e as manifestações de carinho e reconhecimento aos meus ancestrais. E entre eles incluo Plinio e Diva que deram a vida pelo sonho de pedra, que transformaram em realidade, em Fazenda Nova. Ficoc feliz por ver que, dessa fantastica "loucura" vivem hoje milhares de habitantes daquela região e outros, forasteiros que nesta época do ano, que tiram, ali no entorno da Nova Jerusalem, sua base economica de sobrevivencia. Conheço nativos que vivem, o ano inteiro, do dinherinho que apuram na semana santa. Já pensou. Viva Epaminondas, Viva Sebastiana, Viva Diva, Lourinho, Paulo, Nair e viva Plinio! Viva o povo de Fazenda Nova!
Obrigado.
Girley MENDONÇA Brazileiro

Anônimo disse...

Prezado Girley
Parabens pela matéria. Pode-se mesmo imaginar quanta história se perde no tempo, ficando apenas na efêmera memória de quem a viveu. Fico a imaginar que a pressa e o imediatismo em fazer e divulgar notícias, ao lado da pouca vocação de pesquisa, sejam responsáveis por muita história esquecida.

Anônimo disse...

Girley:
Que linda a história dos Mendonças!
Nossa, que história comovente a do Sr. Epaminondas e da Sra. Sebastiana!
É isso mesmo, tem que ser dito. Hoje é muito fácil fazer sucesso com tantos
patrocínios e tanta tecnologia. Mas, ter a idéia e colocá-la em prática com
recursos limitados, aí sim, está o grande mérito.
Parabéns a todos os envolvidos e aos familiares dos que já não estão entre
nós.
Rinalva Figueiredo da Silveira

Anônimo disse...

Olá Girley
Gostei de saber de vc e do seu blog.Que coincidência, mas nunca pensei tanto na família Mendonça Brasileiro, e vc surge no
meu e-mail.
Seguinte, estive no Brejo da Madre de Deus, hóspede do hotel Pousada da Paixão semana passada como encerramento do Curso de Guia de Turismo, e um colega de turma
falou a história do maior teatro ao ar livre do planeta. Como tudo começou... "em 1951 qd o Sr Epaminondas Mendonça e sua família brincavam de teatro e de sua vontade de construir um teatro naquela região, fez a doação das terras de uma fazenda de algodão de sua propriedade, até que o genro Plinio Pacheco "comprou a sua idéia" e tocou o projeto. Em 1968 estréia a peça Jesus em 2 atos e com um coral de 50 vozes".
Meu caro, o sonho de seu avô se torna realidade para a felicidade e orgulho desse nordeste sofrido, mas o reconhecimento é grande de todos os brasileiros, de todos os turistas que traspassam aquelas muralhas de pedra. É simplesmente ma-ra-vi-lho-so!!!
Fico mais feliz ainda por conhecer a família:D. Margarida, Leninha, você, Gilka,Gladys,Gil, Gilsy e os que não me recordo agora. De dizer sem meias palavras, foi de arrepiar o final de semana com um jantar delicioso a céu aberto, a noite de lua cheia, uma paisagem onde o dedo de Deus tocou aquele brejo e faz tudo parecer mais bonito e mágico.AMEI !
E agora o seu blog divertidíssimo, parece que a gente está lhe escutando conversar.
Não sabia que na noite de São João tem show de fogos.Próximo São João é lá que vou passar, me aguarde.
Um abraço super carinhoso, Mary Caldas

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