sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Talentos Encantados

Nestes tempos sombrios da pandemia, a tristeza parece ainda mais triste do que sempre foi. Além do recolhimento forçado venho contabilizando perdas dolorosas de pessoas queridíssimas, inclusive uma irmã, resultando num vazio d´alma difícil de preencher. Dizem ser sentimento de quem muito vive. Mas que é um coisinha difícil de ser vivida, isto é indiscutível. Certa feita, conversando com a grande Dama do teatro pernambucano – Geninha da Rosa Borges – ao completar seus 90 anos, ouvi dela uma assertiva que guardo e, foi não foi, recordo. Segundo ela, “envelhecer pode ser mesmo uma dádiva divina... Contudo, é duro ver partir para a eternidade muita gente querida... dói muito.” De fato, ainda que um pouco distante dos 90, começo a sentir o peso dessa verdade. Gente iluminada, cabeças brilhantes, talentos singulares se encantam deixando-me (deixando-nos) para trás. Muitos partem sem tempo dar um “até logo”. Dias recentes perdi amigos talentosos e verdadeiros ícones da cultura local. Primeiro, em setembro, foi a partida do exímio violonista e compositor Henrique Annes; logo depois, no mês de outubro, foi a vez do grande Maestro Rafael Garcia e, na ultima semana de outubro, o compositor e meu grande amigo do peito, Severino Luís de Araújo, a quem dedico o espaço do Blog neste fim-de-semana. O clima é de luto no cenário musical pernambucano. Foram três perdas lamentáveis. É numa hora dessas que me ponho a questionar o velho ditado do “ninguém é insubstituível”. Conheci Araújo nos idos dos anos 70, quando casando com a minha dileta colega sudeniana, Adelina Freitas de Araújo. Vivíamos os áureos tempos dos combates à pobreza nordestina. Ele no Condepe, depois na Codevasf e nós (eu e Adelina) na velha SUDENE, a verdadeira. Éramos, na realidade, três jovens economistas envolvidos pela missão de desenvolver o Nordeste.
De origem humilde, na Paraíba, Araújo veio, ainda menino, com os pais e irmãos, para ganhar a vida em Pernambuco. Deu certo para a família e para o menino da Vila de Araçá (atual município de Mari) se tornando homem de destaque na Terra de Nabuco. Inquieto, experiente profissional e bem relacionado, Severino Araújo ganhou o mundo e terminou atuando com louvor em inúmeras frentes profissionais nos poderes executivo e legislativo nacional. Mas o profissional atuante trazia na veia outra rara habilidade voltada ao domínio poético-musical, sobre a qual prefiro destacar. Não mais importante do que as demais habilidades, mas, seguramente, a que mais estreitou nossa amizade. Acompanhei a vitoriosa vida desse compositor, desde sua estreia triunfante com o frevo-canção “Morena Azeite” (1984), a grande campeã do IV Frevança (Festival de Frevo e Maracatu), promovido pela Rede Globo de Televisão. Foi a primeira grande vitória na condição de autor de um frevo. Depois dessa vitória, sustentada pela voz do saudoso cantor pernambucano Expedito Baracho, outras inúmeras se seguiram em Pernambuco e na Paraíba. Não tardou muito e o nome do nosso amigo se notabilizou Brasil afora. Muitos famosos disputaram interpretar suas composições, entre os quais: Claudionor Germano (rei do Frevo), Ivanildo Silva, este interpretando “Sem Você Eu me Dano”, composição campeã, no V Frevança, Guadalupe, Valéria Moraes, Cristina Amaral. Por sorte, Araújo contou com arranjadores de mãos-cheias como José Menezes, Ademir Araújo e Duda. Enfim, foi uma sequencia elástica de sucessos musicais entremeados de contos e belos sonetos, revelando, sempre, um ser de extrema sensibilidade e muito humanismo. Mas, como sendo pouco, Severino Araújo enveredou, com igual sucesso e nas últimas estações da vida, pela popular arte da Cantiga de Cordel. Como sempre dedicou tempo e talento compondo verdadeiros poemas depois publicados no livro “A Vida não É Cor-de-Rosa” (2019), onde, por felicidade, deixou sua autobiografia para os que gozaram da sua convivência alegre e gentil. A propósito, sendo hoje, 19 de Novembro, o dia do cantador/cordelista, conforme lembra o Imortal José Paulo Cavalcanti (Jornal do Comercio, 19/11/210), torna-se oportuno homenagear Severino Luís de Araújo, um talento encantado no último 27 de outubro, com um belo cordel da sua autoria: Muita tolerância e fé/ Pratiquei na minha vida/ Bati em todas as portas/ Fui em frente na corrida/ Tenho orgulho do que fiz/ Sonhando em ser feliz/ Todos me deram guarida. NOTA: Foto obtida no Facebook

12 comentários:

José Paulo Cavalcanti disse...

Que tragédia. Preferia não ter lido. Mais um se foi. Agora, um amigo querido. Obrigado por noticiar, mestre Girley. Abraços:

Kenys Maziero disse...

Bela homenagem, amigos verdadeiros, e não interesseiros, nunca se esquece, dos amigos presentes, distantes e ausentes de corpo, porém eternamente presentes de alma!
Um forte e caloroso abraço, meu amigo e irmão Girley!

Nena Pacheco disse...

Gratidão

José Carlos Lucena. disse...

Girley
Me emocionei de tirar lágrimas.
Obrigado por me enviar.

José Otavio de Carvalho. disse...

Seu texto trás duas temáticas relevantes: a libertação do casulo e a redescoberta de Tracunhaém. Parabenizo o amigo pela sensibilidade de captar temas atuais e importantes, além da forma leve, escorreita e cativante da escrita.

Ivonete (Nena) Burgos disse...

Parabéns querido Girley, você nos emociona , com a perda de mais um amigo .
Ah ! Como me lembro dele com Adelina.

Ina Melo disse...

Bravo amigo! O pior do envelhecimento é aos poucos, vermos a partida dos amigos queridos. Imagina quem vive até 100 anos ou mais, com lucidez! Abracos.

Israel Guerreiro disse...

Eu sinto muito pelo teu amigo.

Manoel Quintas disse...

Amigo Girley parabéns, mais uma vez, pelas últimas postagens de seus artigos, todos a super dimensionar o prazer da leitura pela peculiaridade de sua escrita, tão bem definida por nosso comum amigo José Otávio, quando em tempos atuais nossa linda e rica Língua Portuguesa é diuturnamente agredida de todas as formas possíveis. O tributo que você presta ao polivalente Severino Luís de Araújo e, por consequência, ao maestro Rafael Garcia e ao violonista e compositor Henrique Annes, denota sua capacidade de distinguir competências e talentos de indiscutível qualidade diferenciada, além de poder aproximar-se desses ícones e fazê-los integrar seu rol de amigos. Obrigado caro amigo pelo envio desse seu artigo tão prazeroso quanto bem escrito, que irmana-se ao da sua nova visita à cidade de Tracunhaem, servindo para mim a primeira viagem àquele recanto de talentos da cerâmica de nosso artesanato e desejo antigo de conhecê-lo pessoalmente. Vou apressar-me, posto que minha caminhada já se alonga. Abraço e agradecimento do amigo Manoel Quintas.

Jorge Fernando de Santana disse...

Girley, parabenizo você por sua última mensagem semanal, relembrando e enaltecendo nosso velho Amigo Severino Araújo. Parabéns pelo que destacou desse Espírito notável da nossa cultura popular. Parabéns pela forma elegante com que tratou do tema. Parabéns por situar Severino no panteão dos grandes musicistas que também nos deixaram órfãos, nesses tempos de negrume e insuportáveis ruídos. (Sábado, Severino também foi homenageado por Gilvando Paiva, no seu programa radiofônico de uma emissora de João Pessoa.) A certos indivíduos, não basta a imortalidade ôntica; merecem o reconhecimento sociopolítico. E são os formadores de opinião que podem contribuir para a eternização da memória social dessas figuras excepcionais. Você vem cumprindo esse papel, e muito bem. Da minha parte, muito obrigado.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
André Araújo disse...

Girley, muito grato pelas palavras sobre meu pai. Esse seu reconhecimento às contribuições de meu 'painho' é algo que nos deixa felizes e honrados. Espero que o registro, nesse rico espaço de seu blog, deixe para a posteridade pistas sobre abnegados e apaixonados como Severino Araújo, que assim como tantos outros artistas, entregou seu melhor à cultura nordestina e brasileira sem esperar nada em troca.

Aproveito, caro amigo, para deixar-te uma mensagem de minha mãe, Adelina:

"A força da amizade construída durante décadas se faz presente nas horas de alegria e nos momentos difíceis, de aflição. Sua homenagem ao Mago me trouxe conforto e reforçou a velha amizade. Obrigada. Adelina”

Abraço forte,

André (coloquei novamente o post porque meu nome nao apareceu...

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